segunda-feira, 14 de março de 2011

Auditoria Fiscal do Trabalho: compromisso com o trabalho digno Dignidade sobre rodas



                                                                                 

Introdução
            “Digno é o trabalhador de seu salário” (Lucas 10.7).
            Eis uma frase profunda e que diz tudo o que hodiernamente se prega com relação ao labor, quer seja trabalho subordinado ou não. Nem parece que ela foi proferida há mais de 2000 anos por um jovem nazareno que peregrinava pelas cercanias da antiga Galiléia.     Dignidade vem do latim dignitate e pode ser definida como honradez, honra, nobreza, decência, respeito a si próprio, conforme O Novo Dicionário Aurélio da Editora Nova Fronteira.
                O jovem supra mencionado é conhecido pelo nome de Jesus e seus ensinamentos ultrapassam a barreira do tempo e se resume em: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.
            Não se pode falar em fiscalização e compromisso com a dignidade sem perpassar pelo sentimento nobre do amor, pois respeitar-se está intimamente ligado a respeitar o próximo, como leciona MORAES (2002, p. 60/61):
“o princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana [...] estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade de seus semelhantes tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria”.

            Assim, é que só há honra quando se honra; nobreza quanto se pratica atos nobres; decência, quando se demonstra decência ao próximo... Só há trabalho digno quando se aceita a possibilidade de que outros possam tê-lo também.
            Por isso que o presente trabalho é antes de tudo uma crítica às más condições de trabalho a que são submetidos aqueles que laboram sobre rodas, quer seja no transporte público de passageiros, quanto no transporte de cargas pelas rodovias de nosso país afora.
            Para tal, faremos um estudo de caso, abordando quatro fiscalizações realizadas em empresas de transporte, sendo três de passageiros e uma de cargas. Por motivos óbvios, as mesmas não serão identificadas, mas as irregularidades levantadas são comuns a várias empresas do setor, devendo haver fiscalização na atividade de forma mais incisiva para que se possa devolver a dignidade dos trabalhadores deste ramo e, portanto, aumentar a dignidade da auditoria por promover, sobretudo, justiça social.
Primeiro caso
            Chamá-la-emos simplesmente de Empresa A. Tal empresa é responsável pelo transporte de passageiros, atuando na integração dos bairros de uma cidade, como também efetuando o transporte interurbano.   
            A empresa A adota duas medidas daninhas aos seus empregados. A primeira diz respeito à exigência de que o trocador seja responsável pelos numerários roubados no interior dos ônibus. Justifica sua ação pelo fato de existir cláusula convencional que sugere ao profissional colocar no cofre do veículo o valor da passagem, retendo em seu poder 30% dele a fim de que o prejuízo seja menor. Mas independente do valor levado pelo meliante, a responsabilidade é sempre do trabalhador que terá de indenizar a empresa pelo sinistro, assumindo diretamente o risco da atividade, quando o texto consolidado é bem claro ao afirmar que tal risco cabe ao empregador.
            Sabendo que se fizer desconto em folha estará produzindo prova contra si, a empresa simplesmente exclui o colaborador da escala enquanto o valor subtraído não é devolvido na sua totalidade. Ao trabalhador não cabe outra opção a não ser contar com a solidariedade dos colegas que cotizam o prejuízo, pois sabem que ninguém está isento do caso fortuito, podendo qualquer um ser o próximo a passar pela situação constrangedora.
            A verificação da irregularidade é dificílima, pois não há elementos de convicção a ponto de justificar autuação, todavia, foi feita entrevista com vários rodoviários e colhidos os Boletins de Ocorrência, inclusive com os dados dos trabalhadores que passaram pelo evento e que não se encontram mais na empresa e que poderão ser testemunhas numa possível Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, para onde o relatório circunstanciado foi encaminhado. De qualquer forma, ficou consignado em Livro de Inspeção orientação para que não houvesse tal conduta.
            A empresa A possui moderna forma de marcação de jornada e contava também com o famigerado Banco de Horas. Numa análise da folha de pagamento, do saldo acumulado do banco, corroborado com o controle de jornada, ficou claro que a empresa não compensava a sobrejornada nem sequer a pagava como extraordinária, mas tão somente debitava o banco, zerava periodicamente as horas e aceitava os pedidos de folgas fora da escala, como se fosse mera liberalidade.
            A empresa além de ter sido autuada, ainda foi compelida a pagar todo o saldo acumulado dos últimos anos como horas extras e recolher os valores fundiários sobre a diferença salarial. Dessa forma, o trabalhador pode ser recompensado pelas horas a mais que dedicou ao empregador e tornou-se digno pelo seu salário, ainda que pago a destempo.
Segundo caso
            A Empresa B que atua no transporte municipal exigia que seus empregados usassem calça, camisa e sapato de forma padronizada, mas não os fornecia periodicamente só concedendo o uniforme quando da admissão. Exigia ainda que usassem jaqueta de modelo específico adquirido pela própria empresa.
            Ocorre que quando o trabalhador usava jaqueta de outra cor e padrão era chamado atenção e muitas vezes punido com advertências e suspensões.
            Após reunião com o sindicato, foi acordado que a empresa forneceria periodicamente os itens exigidos e que o trabalhador poderia escolher o modelo da jaqueta que quisesse, optando entre a cor preta e azul marinho. O ajuste talvez pudesse ser melhor, mas o exército de trabalhadores com camisas puídas, meias furadas e sapatos gastos exigia que a dignidade os alcançasse de imediato e isso foi feito.

Terceiro caso
            A Empresa C faz transportes intermunicipal e interestadual de passageiros. O grande problema verificado foi o tempo em que o empregado ficava à disposição do empregador, pois havia várias “janelas” durante a jornada, muita “dobra” e encerramento da jornada sem considerar o período em que o motorista pegava ou levava o veículo para a garagem.
            Pela falta de adaptabilidade a jornadas elásticas e a própria natureza do trabalho, havia muita rotatividade, o que exigia cada vez mais sobrejornada. Conseguintemente não eram poucos os acidentes de trânsito envolvendo os motoristas da empresa.
            Consegui juntar os relatórios de viagem, a marcação dos cartões de ponto, o tacógrafo (leitura feita com a ajuda de motorista membro do sindicato) e efetuei verificação física, ficando plantado no terminal rodoviário por algumas horas e dias.  A empresa não teve como argumentar os fatos e foi autuada, compelida a pagar as horas extras, recolher o FGTS e orientada a aumentar o efetivo para que não houvesse sobrejornada além do limite legal, tudo observado e regularizado sob ação fiscal.
            Após a regularização, o fato de o trabalhador poder ver a família com mais freqüência, participar dos eventos sociais e ficar livre do temor dos constantes acidentes, devolveu-lhe a dignidade enquanto trabalhador, enquanto pai de família, enquanto homem social.
Quarto caso
            Trata da empresa D que transporta cargas percorrendo trajeto intermunicipal e interestadual. Possui carretas novas, possantes e muito equipadas. A empresa usa tecnologia de última geração para a manutenção do veículo e para acompanhamento da carga. Entretanto, usa de métodos velhacos para tirar a decência daqueles que colocam a força de trabalho a sua disposição.
            A empresa adota salário misto, havendo parte fixa e outra composta de comissão. Adota métodos de composição salarial que levam em conta a distância, o cumprimento de metas quase sempre aleatórias e que fogem ao controle do trabalhador, quer seja por ocorrência de fenômenos naturais ou fenômenos típicos das grandes cidades, tais como engarrafamento, acidentes e outros que impedem que a carga seja entregue no tempo aprazado.
            Para diminuir seus custos operacionais, a empresa adota diversas fórmulas visando dividir o risco do empreendimento com o trabalhador. Assim é que possui dificílima fórmula para aferir o desgaste dos pneus, envolvendo velocidade, pressão sobre o freio, etc. Também desconta das comissões os pedágios, a falta de atendimento do sinal para localização e só pagava metade das diárias.
            Tendo ocorrido diversas mesas de entendimento a fim de solucionar o caso, a empresa se adequou a alguns itens, pagou diferenças levantadas, mas conseguiu a paralisação da fiscalização naqueles moldes via liminar judicial, porque as mesmas orientações já estavam sendo exigidas para as demais filiais.
            Mas a dignidade foi devolvida aos motoristas tanto pela implantação de critérios de aferição mais justos, pelo abandono de substâncias psicoestimulantes que tomavam para se manterem acordados e atender aos interesses frenéticos da empresa, como pelo abandono do temor pela incerteza do quantum que receberiam, tendo em vista a quantidade de descontos injustificáveis.

Conclusão
            O certo é que nas ações nas quatro empresas, o trabalhador viu suas aspirações profissionais atendidas, seus direitos restabelecidos, sua honra respeitada. Através de ação fiscal digna, mesmo contrariando interesses poderosos, o compromisso com a dignidade pôde ser observado, pois o hipossuficiente teve seu clamor por justiça atendido; a Auditoria trabalhista teve a oportunidade de cumprindo seu papel orientador, fazer cumprir os termos da legislação laboral, promovendo o equilíbrio entre as forças que compõem a relação de trabalho e melhorar as condições sociais do trabalhador, conforme contido na clássica definição de MAGANO (1998, p.10) sobre o direito do trabalho “[...] conjunto de princípios, normas e instituições, que se aplicam à relação de trabalho, tendo em vista a proteção do trabalhador e a melhoria de sua condição social” (grifo meu).
            Não podemos esquecer que os direitos dos trabalhadores estão alçados dentre os direitos sociais e se revestem do princípio que norteia toda a relação entre a espécie - o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Falar em trabalho escravo, degradante ou que de qualquer forma não reconheça a dignidade do ser humano é um contrasenso, pois a função do trabalho é exatamente elevar o homem ao maior patamar – o da dignidade, pois o trabalhador não é um ser abstrato, é antes de tudo um ser humano, merecedor de proteção, como nos ensina ROMITA (2005, p. 195):
A aplicação dos direitos fundamentais no âmbito da relação de emprego não concerne a indivíduos abstratos, mas a pessoas, isto é, a seres humanos em situação determinada pelo meio social em que vivem. Ela só se justifica quando considera os seres concretos, vale dizer, as pessoas encaradas em sua diversidade e levando em conta suas peculiaridades e sua particularidade. Cada ser humano é irrepetível e insubstituível. A fórmula que preside à aplicação dos direitos fundamentais é a que eles concernem ao ‘homem situado’. A pessoa em causa deve ser considerada em sua integralidade, não somente do ponto de vista profissional, mas também em sua vida privada.

            Compromisso com o trabalho digno é exigir meios para que, antes de tudo, o Auditor esteja revestido das nuances da dignidade, tanto quando na ativa, quanto após ter cumprido seu ofício e recebida a merecida aposentadoria. Concomitantemente, é levar a luz da dignidade aos que vivem na escuridão do descaso, da má fé, da ignorância (no sentido jurídico da palavra) e prestar as orientações cabíveis de tal forma que o peso da ação fiscal possa contrabalancear a relação empregado X empregador de forma que não haja desnivelamento e sim moderação, ponderação, discrição entre as forças que colaboram para uma sociedade produtiva, eficaz e feliz.
            Digno é o obreiro de seu salário, digno é o trabalhador das condições de segurança e saúde que o proteja, digno é o trabalhador de ter o fruto de seu esforço empregado com todas as garantias que a norma lhe garante, digno é o Auditor Fiscal do Trabalho que tem o compromisso com a dignidade de seu trabalho e que promove a dignidade através de sua ação, pacificando a relação entre o capital e o trabalho.
            Dignidade sobre rodas, oxalá dignidade em todas as formas de prestação de serviço.

Bibliografia
MAGANO, Octavio Bueno. “ABC do Direito do Trabalho”, 1ª  Edição, São Paulo, RT.
MORAES. Alexandre, Direitos Humanos Fundamentais, São Paulo, Atlas.
ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas Relações de Trabalho, São Paulo, LTR.


 Carlos Alberto de Oliveira

Um comentário:

  1. Trabalho classificado em 1º Lugar no concurso de Artigos promovido pelo SINAIT - Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, no Encontro Nacional dos AFTs em Fortaleza-CE

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